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MANUTENÇÃO DA SEPARAÇÃO ENTRE TELECOMUNICAÇÕES E SERVIÇO DE CONEXÃO A INTERNET

  • Número: 78
  • Eixo: Outros temas ou considerações
  • Autoria: Flávia Lefèvre Guimarães
  • Estado: São Paulo
  • Organização: PROTESTE - ASSOCIAÇÃO DE CONSUMIDORES
  • Setor: Terceiro Setor
  • Palavras Chaves:

Resumo

Manter a separação e diferença entre serviços de telecomunicações e serviço de conexão a Internet, que é serviço de valor adicionado, nos termos dos arts. 60 e 61 da Lei Geral de Telecomunicações e Norma 04/1995, é fundamental para a preservação do caráter multissetorial e democrático da governança da Internet.

Documento

Considerando que um dos objetivos da consulta pública instalada inicialmente pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) é rever as competências e atribuições do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), é importante enfrentar as frequentes dúvidas a respeito da classificação do Serviço de Conexão a Internet (SCI) que, de acordo com nosso entendimento se configura como serviço de valor adicionado.

Entretanto, a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) vem insistindo que o SCI se classifica como serviço de telecomunicações e, consequentemente, que sua regulação estaria sob as atribuições da agência.

A expressão "serviço de conexão" dá margem ao entendimento de que tanto a conexão do meio (telecomunicação) como a conexão lógica (o "handshake" que abre uma sessão de transporte TCP/IP na Internet) estariam contempladas por aquele serviço. Porém, quando menciona SCI, a Norma 04/1995 refere-se à conexão lógica sobre uma rede qualquer de telecomunicações ("carrier").

A conexão de telecomunicação (dois rádios que estabelecem conexão entre eles, ou um cabo entre provedor e cliente, ou um canal de satélite conectado a uma estação terrestre) pode ou não estar sob a jurisdição regulatória da Anatel. Talvez a exceção seja um cabo urbano ponto-a-ponto entre provedor e cliente ou um cabo de passagem, em que o âmbito de autoridade seja a prefeitura (ou uma proprietária de postes). A Anatel regula o "carrier" via rádio, qualquer que seja este. Já a conexão lógica ("handshake" de abertura de sessão) e o transporte de dados (bem como todas as camadas de aplicação) estão fora do âmbito regulatório da Anatel.

Estes esclarecimentos são fundamentais nesse momento em que  o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) pretende editar decreto para rever a estrutura de governança da Internet e alterar os contornos do CGI.br; ou seja, é imperativo que se defina claramente o que seja o SCI e suas distinções dos serviços de telecomunicações.

Nesse sentido, defendemos que a Internet se compõe das seguintes camadas: 

A) Infraestrutura de telecomunicações – camada de rede física

B) Padrões técnicos (TCP/IP, DNS, etc) – camada de conexão lógica ("handshake") e transporte de dados

C) Conteúdos e padrões de aplicações  - camada de rede de aplicações

Sendo assim, deve-se levar em consideração o que dispõe  o art. 61, da Lei Geral de Telecomunicações:

“Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

§ 2º É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações”. 

Os dispositivos transcritos deixam claro que os serviços de valor adicionado integram uma categoria distinta da categoria telecomunicações. 

Ao mesmo tempo, a Norma 4/1995, editada pelos Ministério das Comunicações, Ciência, Tecnologia e Inovação por meio da Portaria 148, estabelece que:

Norma 04/1995 – Ministério das Comunicações

3. DEFINIÇÕES:  Para fins desta Norma são adotadas as definições contidas no Regulamento Geral para execução da Lei nº 4.117, aprovado pelo Decreto nº 52.026, de 20 de maio de 1963, alterado pelo Decreto nº 97.057, de 10 de novembro de 1988, e ainda as seguintes: 

a) Internet: nome genérico que designa o conjunto de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores, equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre computadores, bem como o "software" e os dados contidos nestes computadores; 

B) SERVIÇO DE VALOR ADICIONADO: SERVIÇO QUE ACRESCENTA A UMA REDE PREEXISTENTE DE UM SERVIÇO DE TELECOMUNICAÇÕES, MEIOS OU RECURSOS QUE CRIAM NOVAS UTILIDADES ESPECÍFICAS, OU NOVAS ATIVIDADES PRODUTIVAS, RELACIONADAS COM O ACESSO, ARMAZENAMENTO , MOVIMENTAÇÃO E RECUPERAÇÃO DE INFORMAÇÕES; 

C) SERVIÇO DE CONEXÃO À INTERNET (SCI): NOME GENÉRICO QUE DESIGNA SERVIÇO DE VALOR ADICIONADO, QUE POSSIBILITA O ACESSO À INTERNET A USUÁRIOS E PROVEDORES DE SERVIÇOS DE INFORMAÇÕES;

D) PROVEDORDE SERVIÇODE CONEXÃOÀ INTERNET (PSCI): ENTIDADEQUEPRESTAO SERVIÇODE CONEXÃOÀ INTERNET; 

E) PROVEDORDE SERVIÇO DE INFORMAÇÕES: ENTIDADE QUE POSSUI INFORMAÇÕES DE INTERESSE E AS DISPÕEM NA INTERNET, POR INTERMÉDIO DO SERVIÇO DE CONEXÃOÀ INTERNET; 

F) USUÁRIO DE SERVIÇO DE INFORMAÇÕES: USUÁRIO QUE UTILIZA, POR INTERMÉDIO DO SERVIÇO DE CONEXÃO À INTERNET, AS INFORMAÇÕES DISPOSTAS PELOS PROVEDORES DE SERVIÇO DE INFORMAÇÕES; 

G) USUÁRIO DE SERVIÇO DE CONEXÃO À INTERNET: NOME GENÉRICO QUE DESIGNA USUÁRIOS E PROVEDORES DE SERVIÇOS DE INFORMAÇÕES QUE UTILIZAM O SERVIÇO DE CONEXÃOÀ INTERNET; 

h) Ponto de Conexão à Internet: ponto através do qual o SCI se conecta à Internet; 

i) Coordenador Internet: nome genérico que designa os órgãos responsáveis pela padronização, normatização, administração, controle, atribuição de endereços, gerência de domínios e outras atividades correlatas, no tocante à Internet;

(...)

4. SERVIÇO DE CONEXÃO À INTERNET 

4.1. Para efeito desta Norma, considera-se que o Serviço de Conexão à Internet constitui-se: 

a) dos equipamentos necessários aos processos de roteamento, armazenamento e encaminhamento de informações, e dos "software" e "hardware" necessários para o provedor implementar os protocolos da Internet e gerenciar e administrar o serviço;

b) das rotinas para a administração de conexões à Internet (senhas, endereços e domínios Internet); 

c) dos "softwares" dispostos pelo PSCI: aplicativos tais como - correio eletrônico, acesso a computadores remotos, transferência de arquivos, acesso a banco de dados, acesso a diretórios, e outros correlatos -, mecanismos de controle e segurança, e outros; 

d) dos arquivos de dados, cadastros e outras informações dispostas pelo PSCI; 

e) do "hardware" necessário para o provedor ofertar, manter, gerenciar e administrar os "softwares" e os arquivos especificados nas letras "b", "c" e "d" deste subitem; 

f) outros "hardwares" e "softwares" específicos, utilizados pelo PSCI.

Respeitando, então, o poder regulamentar do Ministério das Comunicações, nos termos do art. 87, incs. II e IV, da Constituição Federal, podemos afirmar que a ANATEL tem editado atos que extrapolam sua competência.

Em agosto de 2001 a ANATEL editou a Resolução 272, por meio da qual instituiu o Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), cujo art. 3º dispunha: 

Art. 3º O Serviço de Comunicação Multimídia é um serviço fixo de telecomunicações de interesse coletivo, prestado em âmbito nacional e internacional, no regime privado, que possibilita a oferta de capacidade de transmissão, emissão e recepção de informações multimídia, utilizando quaisquer meios, a assinantes dentro de uma área de prestação de serviço.

Parágrafo único. Distinguem-se do Serviço de Comunicação Multimídia, o Serviço Telefônico Fixo Comutado destinado ao uso do público em geral (STFC) e os serviços de comunicação eletrônica de massa, tais como o Serviço de Radiodifusão, o Serviço de TV a Cabo, o Serviço de Distribuição de Sinais Multiponto Multicanal (MMDS) e o Serviço de Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio por Assinatura via Satélite (DTH).

Posteriormente, em maio de 2013, a agência editou a Resolução 614, que alterou a Resolução 272/2001, tendo estabelecido no art. 3º o seguinte:

Art. 3º O SCM é um serviço fixo de telecomunicações de interesse coletivo, prestado em âmbito nacional e internacional, no regime privado, que possibilita a oferta de capacidade de transmissão, emissão e recepção de informações multimídia, PERMITINDO INCLUSIVE O PROVIMENTO DE CONEXÃO À INTERNET, UTILIZANDO QUAISQUER MEIOS, a Assinantes dentro de uma Área de Prestação de Serviço.

§ 1º A prestação do SCM não admite a transmissão, emissão e recepção de informações de qualquer natureza que possam configurar a prestação de serviços de radiodifusão, de televisão por assinatura ou de acesso condicionado, assim como o fornecimento de sinais de vídeos e áudio, de forma irrestrita e simultânea, para os Assinantes, na forma e condições previstas na regulamentação desses serviços.

§ 2º Na prestação do SCM não é permitida a oferta de serviço com as características do Serviço Telefônico Fixo Comutado destinado ao uso do público em geral (STFC), em especial o encaminhamento de tráfego telefônico por meio da rede de SCM simultaneamente originado e terminado nas redes do STFC.

§ 3º Na prestação do SCM é permitida a implementação da função de mobilidade restrita nas condições previstas na regulamentação específica de uso de radiofrequência.

Ainda que se pudesse admitir, por absurdo, a modificação ou revogação da Norma 04/1995 por norma da ANATEL, o certo é que os arts. 60 e 61, da LGT, constituem-se como obstáculos definitivos para que se inclua as atividades de conexão a Internet como serviço de telecomunicações.

O protocolo IP, o provisionamento e o fornecimento de endereçamento IP, servidor de DNS recursivo e serviço de encaminhamento de pacotes são atividades próprias do serviço de conexão à internet que podem ser desenvolvidas por uma empresa que, mesmo não sendo detentora de infraestrutura de telecomunicações, contrate capacidade de rede para atuar como provedor de serviço de conexão à internet. 

Respalda este entendimento recente julgado do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 127978, reafirmando que o SCI é serviço de valor adicionado, não sendo necessária licença ou autorização da ANATEL para explorar este serviço.

Portanto, entendemos que o  SCI está regulado não só pela Norma 04/1995, mas também pelo Marco Civil da Internet e pelo Decreto 8.771/2016, estando sujeito à estrutura regulatória configurada nos termos dos arts. 17 e seguintes:

Art. 17.  A Anatel atuará na regulação, na fiscalização e na apuração de infrações, nos termos da Lei no 9.472, de 16 de julho de 1997.

Art. 18.  A Secretaria Nacional do Consumidor atuará na fiscalização e na apuração de infrações, nos termos da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990.

Art. 19.  A apuração de infrações à ordem econômica ficará a cargo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, nos termos da Lei no12.529, de 30 de novembro de 2011. 

Art. 20.  Os órgãos e as entidades da administração pública federal com competências específicas quanto aos assuntos relacionados a este Decreto atuarão de forma colaborativa, consideradas as diretrizes do CGIbr, e deverão zelar pelo cumprimento da legislação brasileira, inclusive quanto à aplicação das sanções cabíveis, mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, nos termos do art. 11 da Lei nº 12.965, de 2014. 

Art. 21.  A apuração de infrações à Lei nº 12.965, de 2014, e a este Decreto atenderá aos procedimentos internos de cada um dos órgãos fiscalizatórios e poderá ser iniciada de ofício ou mediante requerimento de qualquer interessado. 

Ou seja, ANATEL, SENACON e CADE, nos limites de suas atribuições legais, de forma colaborativa e considerando as diretrizes definidas pelo CGI.br, é que integram a estrutura regulatória da Internet, garantindo-se que sua governança se dê de forma multiparticipativa, nos moldes do art. 24, do Marco Civil da Internet.

O SCI deve se sujeitar também ao Código de Defesa do Consumidor, já que se trata de relação jurídica que se enquadra nos termos dos arts. 2º e 3º, desta lei. 

Além das razões apresentadas acima, entendemos que a separação entre serviços de telecomunicações e serviço de conexão a Internet tem efeitos importantes e positivos para evitar a concentração e a verticalização da prestação de serviços essenciais nas mãos de poucos e poderosos agentes econômicos transnacionais.

No atual cenário, as maiores empresas de telecomunicações, operadoras das redes de transporte, acesso e backhaul, como Telefônica, Oi e Claro, são também as empresas que concentram mais de 83% do mercado de serviço de conexão a Internet. Sendo assim, é pertinente e relevante a defesa de que os serviços de telecomunicações e SCI devam ser distintos e sujeitos a ambientes regulatórios diferentes e específicos.

Aduza-se aos argumentos acima, o fato de que o acesso a Internet implica fortemente direitos fundamentais tais como liberdade de expressão, direito ao livre fluxo de informações, privacidade entre outros, que, para serem devidamente protegidos, demandam ambiente regulatório multissetorial, garantindo-se ampla participação da sociedade, a fim de se viabilizar o controle social de forma efetiva e dar consequência a um processo democrático de edição de normas para o setor.

Portanto, defendemos a premissa da manutenção da distinção entre serviços de telecomunicações e SCI.